Pesquisa Talks é uma newsletter quinzenal feita por duas pesquisadoras de conteúdo para projetos audiovisuais.
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Amódio
Este ano dei uma aula chamada “A Pesquisa e o Encontro com o Outro". Nesta newsletter, somos apaixonadas por este tema! Mas, ultimamente, também tenho pensado muito no oposto disso: o desencontro.
Quando falo em "Outro", estou me referindo ao personagem, aquela figura que nos fascina de tal forma que resolvemos dedicar um filme inteiro a sua história. É por isso que, no início da pesquisa, é comum que essa pessoa seja tão idealizada.
Há quem faça de tudo para não abalar esse enamoramento e admitir um certo “amódio”. O termo, usado pelo psicanalista Lacan, expressa a complexidade das relações e o encontro com o objeto do amor, que muitas vezes nos confronta com a falta e a frustração, já que nunca nos entrega exatamente o que queremos.
No momento, estou trabalhando em uma pesquisa de personagem que fiz muita questão de estar, porque se trata de uma jornalista falecida que foi pioneira em um tema bem importante para a sociedade. O contrato de confidencialidade me impede de ser mais específica, mas posso contar que ela morreu na mesma idade que eu e, por acaso, morávamos no mesmo bairro.
O primeiro ponto que preciso admitir é que tive uma identificação e, por isso, me senti enviesada a não só gostar dela, mas honrar sua memória, validando a ideia de que ela teria sido uma pessoa boa e especial. Mas imagine gastar meses de trabalho em busca de pistas que só confirmassem as minhas projeções?
Entrevistando seus familiares, amigos e antigas paixões, não demorou para eu perceber que ela não era (surpresa!) perfeita. Descobri novas qualidades, mas também que era cabeça-dura, tinha um sarcasmo cortante que feria os mais próximos. Impunha suas vontades e fazia birras infantis quando contrariada.
Pesquisar é assim: a gente entra por uma porta e sai por outra. A realidade fura o roteiro e, de brinde, o nosso narcisismo. O desencontro, porém, traz também um convite: ficar com a nova versão do Outro, em uma conexão mais profunda.
Nem sempre é possível. Há projetos que foram abandonados ou completamente repensados porque a figura central não se sustentava. Não são todos os encontros (e desencontros) que convém, mas não me parece possível atuar num campo tão apaixonante quanto a pesquisa fugindo da ambivalência do processo.
Há, inclusive, muita força quando conseguimos refazer o laço, reinvestir na história e no personagem. Apostar na pessoa para além do que queríamos que ela fosse, mas como alguém capaz de inaugurar um novo mundo em nós.
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CAMILA pesquisa as ambivalências dos personagens
Nem lá, nem cá
Teve uma época da minha vida em que eu era quase uma stalker do roteirista Luiz Bolognesi. Exagerei agora, não era tanto assim. Mas o fato é que, como já mencionei aqui uma vez, foi ele quem me contou sobre a profissão de pesquisadora no cinema, o que fez meu coração palpitar. Bom, numa dessas investidas pra me aproximar, porque queria trabalhar com ele, fui fazer sua masterclass com o tema Desenvolvimento de Personagens.
Uma das falas que me marcou, nas três horas absorvendo seu conhecimento, foi a de que o ser humano não é flat, não é uma coisa só, chapada, no bom português. E suas camadas são ignoradas na maioria dos roteiros brasileiros, deixando os personagens mais maniqueístas - vilão e herói. Deu como um exemplo positivo o brilhante Walter White, protagonista da premiada série norte-americana “Breaking Bad”. O químico vai de um cara ingênuo, derrotado, a um fornecedor vil de drogas, mas toda sua humanidade está ali o tempo todo. Você torce por ele e o odeia. Acho um primor.
Todo esse prólogo para expressar um pensamento sobre as dicotomias da vida. A COEXISTÊNCIA de sentimentos distintos em diferentes situações, porque nada e ninguém é exatamente 100% bom ou ruim. Estava escutando o podcast da Vera Iaconelli, “O Estranho Familiar” (dica da Camila ali na frente), em que ela entrevista a jornalista Maju Coutinho. Na conversa, que tem como norte as construções de família, as duas se aprofundam sobre a questão do afeto. E a psicanalista foi muito cirúrgica ao afirmar que existe uma ilusão sobre o que é esse sentimento dotado de uma conotação mais amorosa no senso comum. Para ela, o afeto também envolve embate, porque são neles que as relações se constroem, amadurecem - vejam as famigeradas discussões na noite natalina... Jogue a primeira pedra quem nunca sentiu raiva de um ente muito querido. É a dicotomia, a imperfeição, que nos faz humanos.
E isso não é nada mal.
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BARBARA pesquisa os dois lados da moeda
📌 Uma Dica de Cada
[Camila] Da série “projetos que eu torcia demais para que alguém fizesse” veio aí o podcast “O Estranho Familiar". A psicanalista Vera Iaconelli entrevista diferentes personalidades partindo de um tema pelo qual sou completamente interessada: histórico familiar. A pergunta “o que é família pra você?” costuma render uns 10 minutos de resposta, só pra começar. Pessoas diversas como Fernanda Lima, Rita Batista e Christian Dunker deram entrevistas com uma qualidade e honestidade que nunca vi em nenhum outro lugar!
[Barbara] Me rendi à leitura do badalado escritor francês Édouard Louis e não me arrependi. A autoficção em “Lutas e metamorfoses de uma mulher” e "Quem Matou meu Pai” é uma análise profunda sobre seus pais, depois de um distanciamento do tempo e amadurecimento pessoal. Uma escrita corajosa, crua e pulsante.
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