Pesquisa Talks é uma newsletter quinzenal feita por duas pesquisadoras de conteúdo para projetos audiovisuais.
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Fermento
"Agora cada um vai se apresentar…". O arrepio foi subindo pela espinha, não por ter que improvisar uma mini palestra, mas pelos longos minutos que a primeira pessoa já usava, contando sua trajetória profissional no audiovisual. Detalhe: havia mais 21 pessoas pra fazer o mesmo, na tela cansada do Zoom, às 8h da noite.
A fome foi aumentando, enquanto a generosidade da escuta me faltava completamente. Pra ser honesta, na sétima pessoa já não lembrava nada da terceira. A coordenadora do grupo fez um pedido compreensível: ficarmos com a câmera aberta. É ok jantar assim? Mordisquei um sanduíche e o recheio desabou de um jeito ridículo. Qual a etiqueta? Ficar sem comer até às 10h?
Muitas perguntas na cabeça e uma irritabilidade médio disfarçada pela minha expressão facial. Até que chegou o momento. "Oi! Eu sou a Camila, pesquisadora". E segue o roteiro: “Me formei em _____, trabalhei com __, __ e __, entrei nesse grupo esperando _______." Chame de projeção, mas tive a impressão que os espectadores ansiavam pela minha conclusão para encerrar o dia.
Era a primeira de doze reuniões de um grupo de desenvolvimento de filmes, séries e podcasts, que eu havia sido selecionada pra participar. O objetivo é desenvolver nossos projetos pessoais e, naquele dia, fiquei com receio de ser algo demasiado autorreferente, o que periga ser chatíssimo, tipo mostrar o vídeo das nossas últimas férias para os amigos. Ainda bem que a paciência - a mais subestimada das virtudes - me provou que eu estava errada.
Nas semanas seguintes, começamos a analisar os projetos de cada um. Há um documento detalhado a ser preenchido com logline, sinopse, tema, recorte, etc. Todos se comprometem a ler, assistir a uma apresentação individual e fazer, na sequência, críticas construtivas. E todo mundo capricha! Um movimento incrível de botar fermento nos sonhos uns dos outros. Aprimorar conteúdos que, justamente por serem tão pessoais, estão cheios de pontos cegos.
Essa experiência está me fazendo refletir sobre generosidade e colaboração profissional. Lembrei de todas as pessoas que me indicaram para trabalhos legais e mencionaram meu nome em oportunidades significativas. Também gosto de fazer o mesmo, embora já tenha caído na armadilha da vaidade, esperando gratidão em troca. Com o tempo, vi que é uma grande bobagem. A vida não é toma lá dá cá. Mais importante é engrossar o caldo. Colhemos o que semeamos, nem sempre de forma óbvia. Na dúvida, é melhor ser abundante.
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CAMILA pesquisa métodos criativos e colaborativos
Sutilezas
Eram 10h da manhã, quando N. entrou no link da entrevista. “Desculpe se eu falar qualquer besteira aqui, Barbara, passei a noite na sala de cirurgia e não dormi ainda”. Não era preciso dizer que estava cansada, pois suas olheiras profundas e um piscar mais lânguido já diziam tudo. “Fique tranquila”, apaziguei, “essa nossa conversa é só para fins de pesquisa e podemos retomar em outro momento se sentir que precisa sair”. “Imagina, tô acostumada, são quinze anos fazendo plantão noturno”. N. é enfermeira e completamente apaixonada pela profissão.
Ela faz parte de uma lista imensa de entrevistados para uma série sobre transplantes que estou envolvida. E posso falar aqui, porque já foi anunciada publicamente. Assim como ela, me deparei com diversos profissionais extremamente dedicados, numa vida quase sem rotina, porque um órgão não tem hora marcada pra chegar - a não ser transplantes intervivos, como ocorre com rim e fígado.
Mas, retomando a N., embora exausta, conversamos longamente. Ela me explicando em detalhes uma parte do processo no caso de doador falecido, sua conversa com as famílias num momento de luto intenso. A dor de um lado e salvar vidas de outro. Uma dualidade complexa e bela que esses enfermeiros precisam lidar com a maior delicadeza . N. era muito experiente e cada fala era digna de belas aspas e grifos sobre generosidade.
E esse atributo respingou em mim. Quando foi chegando ao final da entrevista, eu já emocionada em conhecer uma pessoa tão linda e inspiradora, ela solta: “e você também está com uma carinha cansada”. Surpresa dela ter reparado em mim (embora eu esteja parecendo um panda), disse: “não fiz plantão, mas tenho uma bebê de 7 meses por aqui”. Ela sorriu e seguiu “ah, Barbara, é muito cansativo mesmo. Mas, olha, se me permite, te digo para, mesmo num dia difícil, nunca se esquecer de à noite, quando ela pegar no sono, dizer ouvido dela que ela é uma menina muito especial, que você a ama e confia nela. Ela com certeza vai interiorizar seu sentimento”. Bom, para um olho que já estava com o tanque de lágrima cheio, bastou a gota d’água para derramar.
Desliguei a chamada com o peito pleno de satisfação, com um sorriso diante daqueles momentos em que agradeço pela profissão que escolhi. É preciso reconhecê-los.
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BARBARA pesquisa pessoas iluminadas pela vida
📌 Uma Dica (Ou Mais) de Cada
[Camila] "Incompatível com a Vida" é um documentário profundamente comovente e impactante, explorando temas como gestação, vida, morte, luto e políticas públicas. Enquanto a diretora Eliza Capai compartilha sua própria história, ela também investiga as motivações das outras personagens para se exporem em momentos dolorosos diante das câmeras. Premiado no “É Tudo Verdade” de 2023 (a edição deste ano ocorre até 14.4), o filme pode ser assistido no Mubi. A plataforma também adiciona amanhã, sexta-feira, ao seu catálogo o filme "Dias Perfeitos", que estou super a fim de ver!
[Barbara] Antes de falecer, o mestre colombiano Gabriel García Márquez deixou um manuscrito de um possível livro. Mas ele odiou o que escreveu. Mesmo assim, seus filhos acharam que valia a pena lançar como obra póstuma - alertando que não seria o ápice de seu pai. É o que está escrito no prefácio de Em agosto nos Vemos. De fato, não tem como comparar com o fôlego de Cem Anos de Solidão (meu top 5), porém, não deixa de ser uma leitura deliciosa sobre libertação de desejos de uma mulher de meia idade. Gabo é Gabo, né?
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