Pesquisa Talks é uma newsletter quinzenal feita por duas pesquisadoras de conteúdo para projetos audiovisuais
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
StoRÍtelling
Está em cartaz em SP a peça "Histórias do Porchat", desdobramento do programa do comediante Fábio Porchat, no GNT - onde, aliás, uma equipe afiada de colegas pesquisadores vai atrás das mais engraçadas e inusitadas histórias de anônimos e celebridades.
Por ali já passaram casos icônicos que devem ter chegado aos seus ouvidos, como a garota que foi parar de penetra em uma festança VIP na mansão de Luciano Huck ou, mais recentemente, o mochilão malsucedido que Xuxa tentou fazer com a filha Sasha pela Europa. Teve ainda uma edição ao vivo, na estreia da última temporada, em que Fábio tomou uns golpes na barriga, da cantora Simaria, a título de ilustração de um perrengue que ela havia passado.
Quando a atração começou a ganhar notoriedade, outro comediante, Maurício Meirelles, reivindicou o formato, dizendo que havia feito algo similar em 2016. Porchat argumentou que juntar pessoas para compartilhar histórias não era propriamente alvo de patente. Depois, Maurício até participou do projeto, contando sobre seu encontro com o Slash, guitarrista do Guns N' Roses. Em 2021, foi a vez de Luciano Huck ser acusado de "copião", pedindo que anônimos enviassem histórias inacreditáveis para a produção do "Domingão com o Huck".
É interessante notar como uma fórmula a princípio simples, quase uma necessidade existencial, "uma maneira de suportar a vida", como li esses dias, está tão em alta agora. "Para conhecer o que somos, como indivíduos e como povos, não temos outro recurso do que sair de nós mesmos e, ajudados pela memória e pela imaginação, projetar-nos nessas ficções", bem escreveu Eliana Yunes, em "Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados”.
É preciso dizer, porém, que os exemplos trazidos aqui tem um viés específico. São banalidades extraordinárias, papos leves, divertidos, invariavelmente com happy end. As tramas tristes ou mesmo aquelas de superação, que por muito tempo foram alavanca certeira de ibope, sentaram no banco de reserva por um instante.
Já ouvi Porchat explicando o motivo. Depois do combo pandemia, polarização política, baits e fake news, a audiência parece querer relaxar um pouco até mesmo junto dos parentes e amigos com quem discordam em tantos outros assuntos. Quando Evelyn Castro, atriz do Porta dos Fundos, narra a história tragicômica do enterro do seu pai, Fla e Flu conseguem curtir e se emocionar, lado a lado.
Fazendo o papel de "flanelinha de histórias", Porchat torna simples algo complexo: conduzir, dar ritmo e graça à fala de seus convidados, adicionando quase sempre um acontecimento pessoal igual ou mais estrambólico. E é desse repertório que nasceu sua peça, bem focada nas viagens que faz pelo mundo.
Se você já acompanha o artista, é provável que conheça boa parte delas, então o espetáculo ganha gostinho de bis. Mas ainda que prefira outro storyteller, recomendo que busque alguma boa contação de caso para alegrar sua alma em dias difíceis. Se não o melhor, rir ainda é um excelente remédio.
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CAMILA evita trocadilhos e esse título foi uma falha na matrix
História contada
“Em África, quando morre um ancião arde uma biblioteca, desaparece uma biblioteca inteira sem que as chamas acabem com o papel…”. Amadou Hampaté Bá, historiador, etnólogo, poeta e contador de contos maliano (1901-1991)
É tão autoexplicativa essa frase que eu poderia acabar esse texto aqui, meio num estilo terapia lacaniana (ou o que interpretam sobre ela, como diz minha analista).
Tenho um apreço pelas histórias orais, principalmente por aqueles ou aquelas que as guardam em suas memórias e as repassam para novas gerações.
Espalhados principalmente pela África Ocidental, os chamados griots têm essa função onde vivem.
“é um mediador dentro da sociedade; ele resolve conflitos e leva a calma. Ele é músico, cantor, contador de histórias, dançarino, um organizador das cerimônias sociais que utiliza a palavra como seu principal instrumento”.
Essas aspas são desta entrevista com o griot Hassane Kouyaté, natural de Burkina Faso. Vale ler essa matéria para entender um pouco mais.
Transportando esse significado para além-África, ouso dizer que em toda família existe essa figura detentora do passado e presente, das anedotas de parentes distantes e de múltiplos galhos da árvore genealógica. Na minha era a tia-avó Guiomar, uma figura ímpar que como um ímã deixava todos ao seu redor, principalmente depois do almoço. Aquelas longas refeições sem pressa de levantar, com risos estridentes e alguns conflitos (claro).
Ela tinha o dom da palavra. E digo “dom”, porque ganhar a alcunha de contadora de histórias não é para qualquer um. Depois que ela se foi, minha mãe tem um pouco esse lugar, inventa um bocado também, eu diria, hahaha. Mas que graça teria sem um toque de ficção? Ela adora criar personagens para seus netos, Sr Pum foi um deles, motivo de gargalhada das crianças.
Eu tenho uma máxima de que todo mundo tem um bom relato para contar. Basta saber como ir tecendo, parte a parte, num movimento de ondas macias. Guiomar, Helenice, griots... fazem isso.
Como pesquisadora, é muito claro para mim quem rende como bom entrevistado. Aqueles que te conduzem em suas narrativas são os mais especiais, são certeiros. Talvez seja a primeira coisa que eu me atente numa conversa.
Otimista, penso que a tecnologia pode vir, reduzir as falas em poucos caracteres ou segundos, mas sempre haverá um griot na família para chamar de seu. E por aí, tem alguém?
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BARBARA adora encontrar bons contadores de histórias em suas pesquisas
💎 Inspiração da edição
Esta entrevista de Eduardo Coutinho, ao programa Sangue Latino, do Canal Brasil:
Toda memória é inventada, não porque é mentirosa, mas porque é uma memória que poderia ser diferente três dias depois, com outra pessoa. Então depende da interação, de um momento em que as pessoas dizem coisas e que, se eu acredito, são verdadeiras. (...) Eu acho que as pessoas contam suas coisas, não só suas memórias, para dar sentido a suas vidas. Tem até filósofos e sociólogos que dizem que é isso, que a pessoa tem que ser justificada, legitimada. E falar ao outro, se você cria as condições, é se justificar como destino, como singularidade.
📌 Uma Dica de Cada
[Camila] Duas mulheres documentaristas, Eliza Capai e Susanna Lira, estão na mostra competitiva do É Tudo Verdade, respectivamente com "Incompatível com a Vida” e "Nada sobre Meu Pai". Não perco por nada. O festival vai de 13 a 23/4. Acompanhe a programação aqui.
[Barbara] Primeiro romance do moçambicano Mia Couto, Terra Sonâmbula é a concretização da importância sobre a contação de histórias. É através dela que o menino Muidinga e o velho Tuahir resistem a uma terra devastada.
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