Pesquisa talks #52: Labirinto de memórias
Comemoramos dois anos da news com um tema que amamos
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Aquelas placas tectônicas
"Oi, gente!! Boa tarde!! Eu estou fazendo um filme buscando meu pai…". A mensagem pulou em um grupo de Whatsapp de documentaristas no final da tarde de segunda-feira. Uma cineasta contava que finalmente havia reunido ânimo e coragem para encarar essa grandiosa missão, apesar das escassas provas de vida do genitor. Fiquei curiosa pra saber qual tinha sido o gatilho. Por que agora?
Susanna Lira se manifestou na conversa, apoiando a colega de profissão. Há anos, ela vem produzindo o filme "Nada sobre meu pai”. Em 1970, durante a Copa do Mundo, sua mãe conheceu um jovem equatoriano, com quem se relacionou por dois meses. Quando engravidou, ele alegou que estava sofrendo perseguição política e sumiu do mapa para nunca mais. Já adulta, ela foi a Quito procurá-lo.
O ponto de partida dessa pesquisa íntima foi um trabalho escolar de sua filha. “Ela tinha que desenhar uma árvore genealógica e uma das metades de sua árvore não tinha informações... Era uma árvore muito feia”, disse Susanna nesta entrevista.
Como são interessantes esses cliques iniciais, que parecem tão fruto do acaso quanto inescapáveis.
Às vezes é um tuíte. Gaía Passarelli, escritora, repórter e autora da news
postou um belo dia que, ao completar 10 anos, havia ganhado de uma tia um livro com uma carta dentro. A orientação era de que o conteúdo fosse lido três décadas depois. O prazo chegou ao fim e ela ainda o mantinha intocado. Foi o gancho para uma jornalista da Rádio Novelo Apresenta perguntar se Gaía toparia abrir e narrar a carta para o podcast. Eu recomendo muito que você ouça o resultado aqui.Do meu lado, tenho algumas histórias de parentes sobre as quais desconfio que ainda vou me debruçar. Outras já descasquei uma cebola inteira. Dizem que toda família tem alguém com esse espírito xereta de pesquisador. Por motivos óbvios, suspeito que eu seja essa figura. Na próxima edição, conto sobre uma investigação pessoal que fiz e como acredito que basta um momento de abertura, bombástico ou banal, para encontrarmos o que sempre esteve nos procurando.
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CAMILA também pesquisa em causa própria
Ode à memória
Este ano fui pela primeira vez à Mostra de Cinema de Tiradentes. Me encantei por uma cidade tão pequena ter uma estrutura bem articulada para receber profissionais e visitantes, realizar fóruns com propósitos nacionais, oficinas e uma curadoria ótima de exibições.
Após intensa chuva no sábado, as nuvens carregadas sossegaram e deram a chance de ter uma experiência deliciosa: ver um filme em plena praça central, sentada numa mureta. Era o documentário da diretora Juliana Vicente, “Diálogos com Ruth de Souza”. Se você não conhece essa atriz pelo nome (mas com certeza ao ver uma foto, reconheça), só reforça o que ela mesma diz para a câmera: embora tenha carregado uma carreira prolífica, com direito a anos atuando nos Estados Unidos e uma “singela” indicação ao Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1954 (a primeira brasileira indicada a um prêmio internacional de cinema, por sinal), Ruth é negra. E, como tantos, nunca teve o reconhecimento merecido, inclusive financeiramente, de uma Fernanda Montenegro, por exemplo.
Juliana fez um trabalho intenso e profundo ao longo de uma década em contato com esta pioneira na conquista de espaços para artistas negros. Sem contar no mergulho em uma quantidade de imagens de arquivo admirável. É possível sentir na pele a relação estreita que as duas tiveram nesse tempo, principalmente porque a realizadora se coloca no filme, com uma narração em primeira pessoa e aparições em certas cenas. Chega um momento que ela mesma confessa algo como: em tanto tempo que estou entrevistando a Ruth, ela nunca fala de suas emoções. A protagonista sempre diz que falaria depois, o que não acontece. Porém, o sentimento está ali, cravado em cada frame, os silêncios falam por si.
Ao acabar o filme, aplaudido com fervor (eu com lagriminhas nos olhos), refleti sobre nossa responsabilidade como documentaristas, pesquisadoras, em trazer à tona a voz e memória do outro. Eu migrei do jornalismo para o audiovisual porque acreditava que a fala das pessoas ecoando suas ideias era mais potente do que eu escrevê-las. Ainda acredito, só que o direcionamento das perguntas, potencializado pela edição, não deixa de ser uma interferência brutal sobre o que o entrevistado diz. Isso não é novidade para quem trabalha nesse mundo.
Mas, cada vez mais, enxergo a importância dessas duas etapas como peças fundamentais de respeito àquele que se disponibiliza a abrir sua caixa de lembranças. É um baita desafio. Você nunca sabe como o retratado vai lidar ao se ouvir falando. Não é fácil. Estamos fadados a esse não controle psicológico do outro e faz parte do jogo.
Ruth de Souza faleceu aos 98 anos, em 2019. O filme estreou em 2022. Pela minha pesquisa, ela não conseguiu assistir, o que me deixa com o pensamento de como reagiria. Indico a você ver na primeira oportunidade que tiver. É um documento em prol ao não apagamento da memória dos protagonistas negros deste país.
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BARBARA tem paixão pelo registro e pesquisa de memórias pessoais
Edição comemorativa 🎉
Sim sim, chegamos até aqui e estamos nos sentindo vitoriosas. Porque manter um projeto pessoal durante dois anos, com constância, não é fácil. Mas é lindo de ver! Por isso, nessa edição, nos fizemos perguntas sobre esse processo. Obrigada a você, leitora, leitor antigo ou recente por nos acompanhar nessa trajetória =)
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[Camila pergunta] Quando a gente começou a
, o que você achava que seria fazer uma newsletter? Hoje, dois anos depois, o que realmente é ?
[Barbara responde] Ao contrário de você, eu tinha pouca experiência como leitora de newsletters. Fiquei em pânico quando você me propôs, não tinha muita ideia em como começar. Fazer uma news era se expor? Era falar sobre tendência? Sobre meus trabalhos? Eu achava que não tinha tanta coisa assim pra falar. Sou melhor como ouvinte das histórias dos outros. Como eu confessei na primeira edição, estava desacreditada que iria voltar a escrever, depois de anos tentando fugir disso. Mas topei (gente, a Camila é uma pessoa que sabe convencer ahah), porque entendi que tínhamos um propósito instigante nas mãos. Ainda encaro como um desafio quinzenal. Escrever é zero fácil pra mim, no sentido de auto exigência, de raramente ficar contente ao final de um texto. Dois anos depois (chegamos aqui, senhor!), construo um paralelo em fazer newsletter com a pesquisa: sempre há um assunto para compreender e pesquisar. Podem ser diferentes pontos de vista de um mesmo conteúdo. Escrever sobre eles é pular fora da esteira da rotina durante um tempo e se dedicar a reflexões que às vezes aparecem até no próprio ato da escrita.
[Barbara pergunta] Quais foram os principais desafios pra você nesses dois anos, em termos de escrita e também sobre fazer uma newsletter?
[Camila responde] Na época em que começamos a planejar nossa querida peta (apelido carinhoso que damos à
), assinava uma news bem conhecida que foi ficando concisa a ponto de quase virar uma linha. Fiquei confusa se, em tempos de atenção escassa, a indicação era de que tudo deveria virar um bullet point. Hoje, entendo que em primeiro lugar esse espaço tem que ser interessante para nós mesmas. O poder de síntese é uma habilidade admirável, sem dúvida, mas não faria sentido trazer isso pra cá mirando em uma lógica de mercado. Me orgulho de abordar o que sentimos e gostamos, aceitando que uns textos saem melhores e outros piores, mas nunca falsos ou burocráticos. Outro desafio é a autocrítica, saber a hora de parar de mexer na redação e encarar essa espécie de estréia a cada 15 dias, quando enviamos a edição. Feito é melhor que perfeito. Dois anos depois, vejo como esse processo nutriu minha confiança e identidade, algo que foi e ainda é muito rico.📌 Uma Dica de Cada
[Camila] Falando em memórias e encontros familiares inescapáveis, indico o livro Meu nome é Lucy Barton, de Elizabeth Strout. Mãe e filhas distantes se encontram por conta de uma operação no apêndice. A conversa que emerge dessa situação ficcional traz muitos toques de realidade.
[Barbara] O palhaço e o psicanalista: Como escutar os outros pode transformar vidas - Christian Dunker, o professor que bomba no Youtube com explicações sobre Freud e Lacan, e o artista Cláudio Thebas se unem para escrever este livro que tem como pontos em comum a arte da escuta empática e a observação do outro. Para quem se interessa por fazer entrevista ou simplesmente se tornar um bom ouvinte (raridade hoje em dia).
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