Pesquisa talks #49: A erupção do não
Limites, incômodos e vontade de escrever tudo em Caps Lock
Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Um ato de coragem
Estávamos em nossa última edição de 2022 falando sobre metas, aquele frisson do que alcançar na nova aurora democrática e me deparei com um post da artista Marcela Scheid. Esse aqui:
Deu um chacoalhão. Mais desafiador do que fazer é saber o que não fazer. Achamos que seria um belo início de temporada do Pesquisa Talks chamar a Marcela para ser a convidada da vez.
Sem ter visto a resposta dela (ao final), já havia pensado sobre a sensação de que mulheres falam mais sim do que homens. Não encontrei nenhuma pesquisa científica para comprovar, mas minha experiência como sexo feminino permite tecer observações sobre o assunto.
Historicamente fomos moldadas a abaixar a cabeça, a aceitar qualquer condição que nos fosse proposta. Dizer sim para pretendentes duvidosos, pra "não ficar pra titia”; não rebater xaveco-assédio, porque é melhor ser ""elogiada"" do que rejeitada; pegar o trabalho que oferecerem, não importa qual, porque privilégio é ser mulher e ter um ofício. Felizmente essa espiral depreciativa vem mudando, mas não tem como negar que há um ranço lá no fundo, às vezes nem tão fundo assim, dessa cultura do sim, mestre.
Ao refletir sobre o mundo freela, penso que a questão é mais complexa ainda. Negar um trabalho pode significar boletos não pagos num futuro próximo ou longínquo. É uma montanha-russa de emoções, um dia nada, outro dia três trabalhos ao mesmo tempo. Literalmente. Além da parte financeira, a sensação de “a fila anda” é angustiante. Se eu não posso, a esteira de profissionais caminha, alguém pega e perco a oportunidade de outro trabalho com essa produtora, talvez.
O cenário corrobora, muitas vezes, para um leilão às avessas. Quem topa receber menos, leva. Não importa a experiência, o teor e a complexidade do briefing. Acho lamentável.
Voltando à questão do feminino neste quadro apocalíptico neoliberal, sinto que os homens são mais seguros em dizer não e bancarem e negociarem.
Por aqui, com uma bagagem adquirida de mercado e uma segurança da profissional que sou, tento, cada vez mais, ponderar os fatores. O que eu quero com esse trabalho? Qual a produtora? Quais relações farei? É um investimento a longo prazo? Neguei há pouco um projeto cuja temática SUPER sensível não era adequada para o meu momento pessoal. É de chorar sangue, porque sabia da importância do assunto, que era de grande impacto social. Pensei muito. Nunca é fácil para mim (a não ser que seja algo muito abusivo). Dá um aperto no peito, porém, no fim, é um alívio.
Tento acreditar cada vez mais na minha intuição, na minha força, naquilo que já construí ao longo desses anos. Não julgo quem pega trabalhos com um cachê impróprio, porque a conta vai bater lá no dia 31. São as ponderações. Eu já fiz isso. Porém, torço para que as profissionais se encorajem a falar muitos nãos. Só assim teremos mais sims construtivos e caminharemos para o esgotamento do ranço histórico. Falando em voz alta aqui para me ouvir.
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BARBARA faz textão quando o assunto é o mercado de pesquisa e suas negativas
Zoom out
Esse texto começa e termina com um não:
"Não me queria, não conseguiu criar uma conexão comigo", lamentou a participante Maíra Bullos, do reality show "Casamento às Cegas Brasil", 2a temporada, referindo-se ao que tinha ouvido de Guilherme, seu candidato a marido.
Foi mal o spoiler.
Isso aconteceu depois dela ter provado um vestido de noiva "dos sonhos", como definiu, e ter apresentado o rapaz à família. Ele, por sua vez, se mostrava frio, distante, dizia que estava assustado com a velocidade do que chamava de "experimento social". A história do casal terminava ali.
É óbvio pero no mucho que a Netflix não tinha como objetivo principal arranjar um companheiro de vida para a Maíra, mas reter a atenção do assinante, gerar views, divertir, emocionar na melhor das hipóteses. Ganhos pessoais na vida dos envolvidos podem ocorrer quase como um efeito colateral.
Mas a pergunta que me fiz, ao final do episódio, foi se era entretenimento assistir a uma mulher sendo rejeitada, com o rímel borrado de choro para mais de 190 países. A resposta é desconfortável, porque trabalho nessa indústria e sei que esse tipo de projeto se tornou o carro-chefe. É só olhar o top 10 dos mais vistos.
Outro caminho seria: "Essa querida sabia onde estava se metendo, é adulta, pretendia aparecer, bombar nas redes sociais". Opinião impopular: não é tão simples calcular o impacto da hiper exposição. Há inúmeros relatos a respeito.
Falando nisso, nessa semana começou o BBB 23. Cativante o programa, muito, eu sei, mas cada vez mais sádico. A "Casa de Vidro", que confina alguns candidatos a brother em uma jaulinha no shopping, é autoexplicativa nesse sentido.
Bem, não quero fazer a Pernalonga blasé de batom e dizer que é hora de "desligar a TV e ler um livro". Adoro assistir algo leve, despretensioso. Ainda assim, quando envolve humilhação é boa hora pra dizer: "Aqui eu pulo fora". Me interessa pensar no que mais podemos criar. Dá pra melhorar ou pensar outros formatos? Acredito que valha fazer esse esforço. Mas me diga você, como espectador, anunciante, produtor de conteúdo: Dá? Interessa? Sim ou não?
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CAMILA pesquisa, assiste TV e lê livro
Você me interessa:
Marcela Scheid é autora de algumas das obras que nos inspiraram a escolher o tema desta edição. Acompanhe o trabalho dela aqui.
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Qual seria o melhor resumo do que você faz aqui, no mundo?
Sou artista, designer gráfica e escritora. Investigo as questões de gênero em sua contemporaneidade, as imperfeições humanas e o acesso à vulnerabilidade emocional como libertação.
Gostamos muito do jeito que você fala sobre ‘nãos’. Tem o perigo do excesso, da rigidez, que pode virar uma autocrítica pesada… Mas tem a glória de saber e respeitar os próprios limites. Quais foram os melhores e mais saborosos 'nãos' da sua vida?
Confesso que aprendi a dizer não há pouco tempo e sinceramente acho que é um exercício diário mesmo. Como mulheres, fomos ensinadas a cuidar do outro, a normalizar os sacrifícios e a não incomodar o outro mas sempre ser a incomodada e calada. O não é sobre se colocar em primeiro lugar, traçar limites e também devolver o incômodo. Ano passado tive um date e não quis continuar, decidi ir embora, porque não me senti bem na casa do cara, esse 'não' foi difícil pra mim, mas com certeza o mais libertador.
📌 Uma Dica (ou Mais) de Cada
[Barbara] A Elegância do Ouriço. Uma concierge de um prédio de gente rica em Paris. Uma garota moradora do mesmo local. A faceta ranzinza das personagens ganha um contorno estarrecedor nas mãos da escritora Muriel Barbery. Ambas escondem sua inteligência elevada e suas referências de literatura, filosofia e cinema, principalmente daqueles que as tratam com desdém. Até que um novo integrante do edifício as tira da clandestinidade.
[Camila] Aftersun e meu eterno interesse por tramas familiares em que "não acontece nada". A diretora Charlotte Wells rebobina a relação entre pai e filha, resgatando memórias de umas férias num resort decadente na Turquia. Sutil e emocionante, a cena em que os dois dançam Under Pressure é das mais lindas que vi nos últimos tempos.
[Marcela] Esse mês li dois livros que me marcaram bastante, apesar deles serem completamente diferentes, ao mesmo tempo se relacionam de uma maneira muito dolorida que é o abuso. O primeiro é “Também guardamos pedras aqui” da Luiza Romão e o segundo é “Corpo Desfeito” da Jarid Arraes.
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bárbara, muito quentinho o seu texto sobre nãos, e eu só penso nos sims que a gente ganha quando nega algo (que não necessariamente é uma emboscada, mas que pode ser simplesmente fora do timing da vida ou da carreira)
enho pensado demais mais como sobre impor condições e limites, que podem mudar até o rumo daquilo que seria uma negativa. até que pode funcionar e, claro, está dentro do campo do privilégio de poder arriscar. sei que vou perder coisas, mas penso são coisas que eu nem queria mesmo hehehe
Por trás de todo não tem uma sessão de terapia paga.