Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Guarde seus escritos
Era feriado quando recebi uma mensagem da personagem: “Você consegue voltar aqui? Achei um diário, confundi algumas informações, quero te mostrar”. Assim que pisei em sua sala, vi o volumoso caderno de adolescente na mesa de centro. Nos sentamos ao redor daquela peça preciosa, beirando a um ritual. Não deixa de ser.
Abriu na página certa e retirou um fragmento de jornal envelhecido. “Posso começar a gravar?”, perguntei. “Pode, porque talvez eu não repita mais”. Apertei o rec e passei os olhos na matéria. “Depois que você saiu na segunda-feira, fui em busca dessa agenda, pra confirmar a informação que havia dito. Eu estava errada. Na verdade, tive a certeza da morte de meu pai neste ano”, apontando o artigo. Anotado à caneta havia uma data de 1991, quando familiares de desaparecidos políticos tiveram acesso à uma pasta do DOPs. Seu pai, assim como muitos, morreu nas mãos violentas do Estado no período da ditadura militar brasileira.
Pela posição de seu diário, mantido aberto, senti que ela estava disposta a ler seus escritos e pedi que o fizesse. Tomou fôlego e, numa fala apressada, começou a narrar sua tristeza no fatídico dia, quando se deparou com aquele pequeno texto contendo o nome daquele que nunca conheceu. “Eu ainda tinha esperança de que ele poderia ter fugido e estava vivo. Aqui, caiu a ficha de que ele não voltaria”, contou, em uma pausa. Abriu um papel à parte encaixado no miolo, porque as poucas linhas não deram conta da enxurrada de sentimentos da época.
Com os olhos verdes marejados, ela seguia corajosamente na leitura que expressava desejos irrealizáveis, como abraçá-lo, e uma dor profunda da ausência paterna. Eu escutava os escritos de uma jovem que vivia, por fim, seu luto. A narrativa parecia de uma mulher madura, não de uma adolescente de 16 anos. A vida tratou de amadurecê-la antes do tempo. Olhei para baixo compenetrada, enquanto lia, uma forma de minha interlocutora não se sentir intimidada, mas de saber que estava com ouvidos atentos. Ela terminou, levantei a cabeça e ficamos uns segundos em silêncio.
Apenas agradeci por confiar sua intimidade a mim. Não é todo dia que sou convidada a escutar um relato tão visceral. Recebi esse momento como um presente. Como pesquisadora e como ser humano.
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BARBARA é uma pesquisadora apaixonada por relatos únicos
Fendas e fissuras
Já ouviu falar sobre dispositivos narrativos? Vez ou outra esse assunto aparece nas produções documentais. São acontecimentos premeditados pela equipe e que resultam em uma interação um tanto imprevisível entre quem filma e quem é filmado. Em "Doméstica" (2012), o diretor Gabriel Mascaro deu uma câmera para sete jovens gravarem as próprias empregadas domésticas. Já no longa chileno "O Pacto de Adriana" (2017), a realização do filme é dispositivo em si para a investigação pessoal da cineasta Lissette Orozco sobre o passado controverso de sua tia na ditadura. Adorei e recomendo esta obra.
Há ainda um exemplo interessante que envolve a pesquisa de personagens. Em "Canções" (2011), Eduardo Coutinho fez um anúncio no jornal e espalhou panfletos pelas ruas do Rio de Janeiro indagando “Qual a música da sua vida?”. Um jeito nada usual de chegar ao futuro elenco.
Curiosamente, nunca havia pensado nas telas e páginas em branco como um poderoso dispositivo. O que pode acontecer quando as colocamos na nossa frente? No livro "Caderno Proibido" (Cia das Letras), da italiana Alba de Céspedes, a autoescrita ganha contornos, quem sabe, incendiários.
Era um domingo e o moço da tabacaria não queria me vender o caderno, eu lembro. Ele disse "É proibido". Então fui tomada por um desejo irrefreável de tê-lo, tinha esperança de poder extravasar nele, sem culpa, meu secreto desejo de ainda ser Valeria.
No pós-Guerra, Valeria, uma pacata esposa, secretária, dona de casa e mãe de dois jovens, vê sua vida mudar ao comprar um caderno preto, onde passa a escrever seus pensamentos. Na calada da noite, cada palavra confessada naquelas páginas produz efeito na autora. Já não sabemos se a personagem vive para ter o que escrever ou escreve para ter o que viver.
Parece-me ter chegado a um ponto em que é necessário passar minha vida a limpo, como quem arruma uma gaveta na qual, por muito tempo, tudo foi sendo jogado de qualquer jeito.
O caderno é dispositivo, fenda e fissura para a subjetividade da personagem. Entre a atração e a perturbação do que ali emerge, nunca mais olharei para um diário da mesma forma.
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CAMILA é pesquisadora e viu essa dica de leitura nas queridas news Flows e Vou te falar
Você me interessa:
com Aline Valek, escritora, professora, ilustradora, fã de zines, idealizadora da newsletter Uma Palavra e do podcast Bobagens Imperdíveis (ufa!)
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Se fosse pra escolher uma cena da sua infância, qual seria?
Colégio estadual, meio dos anos 90, dia. Eu tinha acabado de me mudar de cidade, para o entorno do DF, e já era o segundo colégio novo que eu entrava naquele ano. Eu não conhecia ninguém, as amizades já estavam todas formadas, eu não entendia muito bem os códigos sociais dali, eu era uma alienígena total. Para completar, sempre fui tímida. Então, sentada sozinha no banco do lado de fora da sala de aula, percebi um alvoroço das meninas da turma em torno de um caderno. Elas estavam combinando quem seria a próxima a ler. Fui espiar o caderno, que era daqueles pequenos com folhas de pauta, bem comum, e ele estava completamente preenchido com uma história em quadrinhos. A autora era outra garota da turma, que também se chamava Aline. Eu perguntei se podia ler e ela anotou meu nome na última folha do caderno dela, onde registrava a fila de empréstimo. Ele ia circulando de mão em mão e quando chegou a mim, fiquei encantada com a HQ, que era uma historinha romântica que acompanhava a vida de um grupo de personagens, feito um seriado. Como as minhas colegas, também fiquei doida pela continuação, na qual a autora estava trabalhando no momento, em um caderno novo. A outra Aline também era bem tímida e passava muito tempo sozinha, desenhando. Ainda assim ela conseguia ser popular e vista com admiração pelas outras. Resolvi me aproximar dela e acabamos ficando amigas. Ela me ensinou a desenhar no estilo dela, que era simples e permitia uma certa agilidade em terminar a história, o que me inspirou a criar minha própria HQ novelinha. Preenchi um caderno inteiro com uma história, depois outro, mais outro. Eu não tinha tantos leitores quanto ela, mas eles me ajudaram a me aproximar das amigas que carreguei pelos próximos anos. O que a minha xará me inspirou a fazer ali mudou a minha vida para sempre! Contar histórias e criar personagens é o que faço até hoje para encontrar meu lugar no mundo — e eventualmente me sentir menos sozinha.
Quem é a pessoa que mais te interessa no momento?
As personagens da história que estou escrevendo agora! Estou naquela fase obcecada. Estar imersa na escrita é isso, passar tempo convivendo com essas pessoas imaginárias, que precisam ser mais interessantes do que qualquer outra coisa que eu esteja vendo. Passo o dia pensando nelas, em como elas falam, o que estão fazendo, os problemas que estão tendo na vida, quase como se existissem. Mesmo quando não estou escrevendo, invadem meu pensamento sem convite, aparecem nos meus sonhos, vêm me pedir atenção. Agora mesmo enquanto respondo essa entrevista, estão ali, sentadas no canto, esperando o momento de eu chamá-las para entrar em cena.
Qual seria o melhor resumo da sua atuação profissional?
Contadora de histórias resume bem o que tenho feito até aqui. E o que tenho aprendido é que histórias são líquidas, cabem em qualquer recipiente. Pode ser muito mais do que escrever romances, ou escrever livros. É uma possibilidade, entre tantas. Por isso acho a internet tão interessante, por me permitir navegar entre as várias formas possíveis de criar narrativas. Por exemplo, é uma viagem contar histórias usando sons, que é o que faço no podcast! E ainda acho que vão surgir muitas outras formas e quero explorar tantas quantas forem possíveis.
O que você acha que está fazendo aqui, no mundo?
Mais ou menos o que todo mundo está fazendo. Vivendo para pagar contas, basicamente. Brincadeira! Na verdade, é isso mesmo, mas pensando na existência um pouco além da repetição da vida no mundo capitalista, acho que estou aqui observando. Tipo uma senhorinha sentada na calçada com seu copinho de café, pitando seu cigarro, vendo as pessoas passarem, observando os acontecimentos, eventualmente tomando nota de algo que viu em um caderninho que pode ser que ninguém leia, mas faz parte desse processo de observar de forma ativa e de perceber como tudo se transforma quando passa pelo filtro da nossa percepção.
Você escrevia zines na adolescência, um período conhecido pela busca de identidade. A escrita, nessa fase da vida, te ajudou nesse processo?
Primeiro, me ajudou a entender o que eu gosto de fazer e que acabou se tornando a minha profissão. Fazer zines me ensinou a ter contato com todas as etapas de criação e publicação, desde a concepção de uma ideia até o contato com o público, passando pela edição, produção gráfica e distribuição, que foram ferramentas muito importantes que eu usaria como autora independente. Ali eu já comecei a praticar essa guerrilha de publicar do jeito que dá, de usar os recursos que eu tenho, de não precisar pedir permissão pra ninguém. As histórias que eu escrevia nas minhas primeiras zines, ainda que exageradas e cheias de elementos de fantasia, eram sobre a minha vida. Os personagens eram as pessoas que eu conhecia. Encontrei um certo conforto em perceber que revestir a realidade com uma boa camada de ficção a tornava mais fácil de suportar. Dentro daquelas páginas, ser estranha não era um problema. A minha persona das HQs não precisava se sentir deslocada, porque o mundo que a cercava era tão esquisito quanto. Encontrar quem se identificava com aquela minha forma de ver o mundo também me ajudou a aceitar melhor o meu estilo, a minha voz e meu interesse por tudo o que abrisse portais para realidades diferentes da minha.
Quando escreve sobre si própria, o quanto você acha que sua persona literária reflete quem realmente é?
Alguém consegue dizer quem realmente é? Eu não consigo determinar assim com tanta clareza quem eu sou "de verdade", até porque isso está sempre mudando! Mas para mim é justamente o oposto: sinto que é quando escrevo que consigo comunicar quem realmente sou. Sem o ruído da minha falta de jeito, das minhas limitações quando estou de carne e osso na frente de outras pessoas, tentando traduzir o que está se passando aqui dentro. Na escrita é mais fácil me expor. Vai ver a persona é essa versão que uso para interagir no mundo lá fora, que está mais acostumada a fingir. Será que eu sou uma persona que finge ser de verdade quando escreve? Ai meu deus, essa pergunta vai me deixar em crise existencial.
Qual sua autora ou autor de autoficção favorito? Poderia recomendar uma obra dessa pessoa?
Acho engraçado esse conceito de autoficção como categoria, porque, ao meu ver, todo autor usa alguma quantidade de sua própria matéria, suas memórias, sua vida, na composição daquilo que escreve, por mais afastado da sua realidade aquilo pareça. Toda ficção não é um pouquinho autorreferente? E uma autora que pinga gotas da própria vida naquilo que escreve de uma forma que acho muito bonita é a Fal Azevedo. Gosto de tudo o que ela escreve, de cada post no precioso blog Drops da Fal até os diarinhos, mensagens curtas que ela manda todo dia por Whatsapp. Também recomendo demais os livros dela, como o "Sonhei que a neve fervia" e "Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite". As palavras dela constantemente me ensinam caminhos para mim mesma. Então também é autoficção nesse sentido: parece até que ela está escrevendo sobre a minha vida!
Além da escrita, você desenha. Como funciona esse intercâmbio de formas de expressão em seu trabalho?
Desenhar me ajuda a pensar, então faz parte do meu processo de ideação e de escrita de uma forma meio orgânica. Acontece também da ilustração se tornar parte integrante do que eu escrevo, como em uma série de textos ficcionais que comecei a mandar na minha newsletter uns anos atrás e estou, aos poucos, publicando no meu blog, na série Personas. Eu começava a escrever os personagens com o desenho. Ele nascia assim, na imagem, e a partir dela eu escrevia a história que aquela ilustração contava. Como ilustradora, me considero meio preguiçosa. Ainda mais observando outros artistas, muito mais talentosos, que usam técnicas mais avançadas, vejo o quanto estou distante de dominar essa habilidade. Comparação é uma desgraça, né? Ainda assim, ilustrar pra mim é mais uma forma de pensar. E é o que acabo buscando na escrita: por mais que eu esteja usando palavras, o que estou fazendo é criando imagens na cabeça das pessoas. Por isso, pra mim, desenhar e escrever são processos muito misturados. Não consigo separar.
📌 Uma Dica de Cada
[Barbara] Cidades Afundam em Dias Normais. Livro de Aline Valek que levou minha imaginação para a pequena Alto do Oeste, no meio do cerrado. A cidade afundou inesperadamente e, anos depois, após uma seca, passou a ser revelada. Não apenas os destroços, mas também resquícios da vida de quem passou por ali, resgatados por uma ex-moradora.
[Camila] Ainda nos ecos mineiros do longa Marte Um e da visita à Inhotim, descobri (antes tarde do que mais tarde) o Mercado Novo e seu mix delicioso de comidas, drinques, arte e design em BH.
[Aline] O roteiro do filme A Zed and Two Noughts, do Peter Greenaway. É uma das referências para o que estou escrevendo agora. O filme é uma doideira maravilhosa sobre um zoológico e gêmeos fascinados pelo processo de decomposição. Até escrevi sobre o filme aqui, como parte do processo de digeri-lo. Dá uma boa amostra também do tipo de coisa estranha que eu gosto de assistir.
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A Valek é uma fonte de inspiração por vários motivos, mas aqui destaco em especial essa maneira positiva de se relacionar com a internet. Eu passo metade do tempo reclamando de como a internet 2.0 destruiu o mundo e ela monta nesse diabo e torna um espaço de criatividade e disseminação de ideias. Incrível mesmo, de verdade.