Por Barbara Heckler e Camila Camargo
Na próxima edição, estamos de mudança para o Substack! Você vai continuar recebendo normalmente nossa news. Esperamos que goste da casa nova :)
Boia de salvação
por Barbara Heckler
Você pode achar que Freud era um senhor machista do início do século XX, como 99,999% dos homens à época. Porém, para mim é inegável a genialidade em seu método da linguagem como uma forma de fluxo de pensamento para o consciente. Simplificando: o desabafão. Aquele que sai como uma enchente da boca, sem controle, alagando tudo ao redor. A força do rompimento da comporta pode ser dolorosa, mas acredito que o inundar de palavras seja, paradoxalmente, a melhor boia de salvação. É incrível esse poder de resolução de si (pelo menos, a tentativa).
Tenho tanto interesse nesse tema que fui estudar psicologia. Como pesquisadora, inúmeras são as vezes em que me sinto encharcada pelo outro. Consigo traçar um paralelo bem claro entre a minha profissão e a de um analista/ terapeuta, com suas devidas proporções. As perguntas que faço podem abrir novos caminhos de reflexão. Não é raro em entrevistas escutar do interlocutor “nunca falei isso antes”, “nunca havia pensado nisso”. Seria hipócrita de minha parte negar uma alegria interna de tê-lo conduzido para afluentes deste grande rio que é a psique. Óbvio que fico feliz. A questão é que se o assunto está turbulento, vira uma tromba d’água, vem pau, vem pedra e todas as águas de março. O que se faz do lado de cá? É um ponto sério. Desligo o telefone e deixo a pessoa afogada? Eu fiz bem de ter dado vazão, sem querer (querendo), ou causei ondas gigantes na vida alheia?
Não tenho uma resposta concreta, continuo nessa busca, por mais que me coloque como um ouvido atento e acolhedor. De qualquer forma, cada vez mais tenho a consciência desta baita responsabilidade de lidar com esse oceano de ideias e pensamentos. O que sei, é que não dá para abandonar à deriva.
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BARBARA é pesquisadora e precisa lidar com tsunamis do outro de vez em quando
Convite
por Camila Camargo
"Entrar com o Google Meet. Só um momento... Pronto. Você poderá participar em breve". Um clique no botão azul e abre-se a tela da videochamada. Do outro lado, figuras públicas ou anônimas, quase sempre no horário combinado. Agradeço a disponibilidade e fazemos um pacto: nada do que for dito ali se tornará público.
Assim começa uma entrevista na fase de pesquisa de uma série ou filme. A despeito das perguntas específicas do projeto, começo pela infância até chegar nas figuras parentais. Nunca encontrei ninguém imune a essa influência e vou fazendo as conexões. Alegrar uma mãe em depressão parece ter sido o "estágio" de um comediante, emagrecer em uma família de obesos foi extremamente difícil para uma corredora amadora, se tornar um político importante pode ter relação com a humilhação que seu pai sofreu por conta de uma derrocada financeira. Pactos ocultos de fidelidade e pertencimento, padrões que se repetem. Não busco confissões, mas quando estamos fora do nosso próprio looping emocional, correlações como essas saltam na frente de um observador mais atento.
"Obrigado, se não servir para o filme, valeu como terapia", ouvi esses dias. Sei que é uma força de expressão, mas o que faço melhor profissionalmente é elaborar respeitosamente essas complexidades humanas. Foi o jeito que encontrei de provocar novos pontos de vista e sair dos lugares comuns sobre determinados perfis ou personagens. Talvez isso sirva também à outra pergunta que costumo fazer: "Qual sua crença pessoal mais profunda?". A maioria fala de Deus e amor, à sua maneira. Entrevista após entrevista, acho que encontrei a minha resposta: "Origens". É o ponto de partida, o caldo mais suculento de um indivíduo e um poderoso convite, tanto para a mudança quanto para a autoaceitação.
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CAMILA elabora a própria vida enquanto pesquisa
Ariela K. é uma paulista nascida no Mato Grosso e reinventada em NY. Autora de “A Diletante”, newsletter que aborda suas leituras e contém um projeto sobre a Bíblia, com um viés histórico. Sem doutrinas ou dogmas, escreve sob a perspectiva de uma judia secular. "A cada texto, eu mesma descubro o que quero dizer com isso."
Se fosse pra escolher uma cena da sua infância, qual seria?
Eu tenho remexido algumas lembranças para talvez escrever um livro de ficção. Lembro de uma cena, que devo ter romantizado, do meu pai levando eu e a minha irmã para a piscina às 20h de uma véspera de Natal. Éramos uma das poucas famílias judias da cidade e todo mundo em volta estava celebrando, enquanto nós tínhamos nosso momento particular.
Qual seu personagem favorito de um livro, filme ou série? Por que?
Acho que eu poderia dar uma resposta mais inteligente, mas também menos honesta: a personagem que eu mais gostei e mais formou minha personalidade foi Rory Gilmore, de Gilmore Girls. A relação dela com a mãe, o amor pelos livros, e mesmo as besteiras que ela fez enquanto crescia, moldaram as possibilidades que eu pensei para a minha própria vida.
Quem é a pessoa que mais te interessa no momento?
Tenho gostado muito da fase considerada doidinha do Tolstói: no auge da fama, ele tem uma crise existencial, renega os próprios romances e escreve “Uma confissão”, narrando as suas dúvidas e a sua conversão ao cristianismo. Não consigo pensar em mais nenhum artista da estatura de Tolstói que não só tenha mudado de rota, como também exposto o processo com tanta abertura e desprendimento.
O que você acha que está fazendo aqui, no mundo?
Eu gosto de uma frase do Kurt Vonnegut que diz: “A purpose of human life, no matter who is controlling it, is to love whoever is around to be loved” (Um propósito da vida humana, não importa quem esteja controlando, é amar quem está por perto para ser amado). Há ao menos uma pessoa que precisa do nosso amor - um parente, uma amiga, um leitor - e a gente precisa achar essa pessoa para amar, e ser encontrado de volta.
Ilustração da penúltima edição da newsletter "A Diletante": "O eu que se apaga"
Nesta edição de “A Diletante”, você traz um depoimento pessoal ao falar de mulheres, autoria e anonimato. Você considera a newsletter um lugar de desabafos?
Não. Como a Elena Ferrante, que eu cito nesta edição, acho que a escrita pública é uma possibilidade de existir de um jeito diferente. Curiosamente, essa divisão entre quem somos e o que escrevemos também ajuda a mitigar a auto-censura.
A escrita já cumpriu essa função para você? Se sim, como e em quais suportes?
Acredito que a escrita particular cumpra para mim mais a função de desabafo. Há muitos anos tenho caderninhos que servem como repositório das minhas ideias e sentimentos. Articulá-los solitariamente, sem nenhuma pretensão de beleza ou coerência, é um processo que me acompanha faz algum tempo.
Para muitas pessoas, a religião ganha um sentido confessional mais tradicional. Como estudiosa do assunto, qual sua perspectiva sobre essa relação?
Como judia, eu nunca aprendi a associar confissão à religião; não há no judaísmo a ideia do rabino como alguém que escuta nossos segredos e nos redime. Mas eu entendo que seja muito poderoso o processo de articular o que se sente, e confiar esse depoimento a alguém que o receba com amor, com misericórdia.
De quem você gostaria de ouvir uma confissão? Por quê?
Eu ouviria uma confissão de qualquer pessoa que eu pudesse ajudar pelo ato de escutá-la. Tenho curiosidade de saber o que se passava pela cabeça de algumas pessoas que hoje estão mortas, mas talvez o que elas não tiveram vontade de articular em vida deva mesmo ser enterrado.
Para falar com a gente, responda esse e-mail ou escreva para pesquisatalks@pesquisatalks.com